Prefeitura de Porto Alegre e EPTC afirmam que os ônibus da Capital são acessíveis, mas essa ainda não é a realidade vivida por todos os usuários com deficiência física

Cadeirantes ainda relatam defeitos em ônibus e dificuldades enfrentadas para acessar veículos na capital | Por: Fabiane Cunha e Lucas Brzezinski

Fabiane Cunha
10 min readSep 11, 2022
Foto: Gustavo Roth/EPTC/PMPA/Reprodução

“Quem adaptou esses ônibus, não está em uma cadeira de rodas”. Essa foi a frase dita por Carolina Santos para descrever a dificuldade que ainda existe em acessar o transporte público de Porto Alegre. Carol, como é conhecida, é líder do Movimento Feminista de Mulheres com Deficiência chamado INCLUSIVASS e integra o Coletivo Feminino Plural. Para ela, “o transporte de Porto Alegre ainda é precário e a cidade ainda não está totalmente apta a nos receber”.

A Lei Brasileira nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, “estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências”, conforme registrado no site do Governo Federal. Entretanto, as dificuldades enfrentadas por cadeirantes são notórias, a começar pela falta de rampas e elevadores de acessos em ônibus de transporte público.

Em Porto Alegre, segundo dados da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), em janeiro de 2022, 100% dos veículos de transporte público em circulação atendem à Portaria nº 360 do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO). Isto indica que todos os veículos que detém o selo possuem qualidade adequada de fabricação, respeitando e atendendo aos requisitos de determinada norma ou regulamento técnico.

Conforme comunicado da EPTC, “os veículos estão devidamente adaptados conforme indicado pela norma do órgão brasileiro responsável pelo estabelecimento de programas de avaliação da conformidade”.

No entanto, o selo do Inmetro não significa que todos os veículos de Porto Alegre oferecem o devido suporte para os cadeirantes. Afinal, a própria EPTC informou que de um total de 1465 ônibus da frota cadastrada (Janeiro 2022), 1340 veículos (91,5% da frota) são os que de fato possuem instalação de plataforma elevatória/elevador ou piso baixo [que também podem ser rampa], além de espaço reservado, que facilitam o acesso para quem utiliza cadeira de rodas. Em suma, 8,5% dos ônibus ainda não são de fato acessíveis aos cadeirantes.

De qualquer forma, quem usa estes transportes não tem uma visão totalmente positiva. “Ainda que muitos dos ônibus sejam considerados acessíveis, eles carecem da acessibilidade propriamente dita, já que mesmo possuindo elevadores, há muitos casos em que os elevadores estão danificados, fazendo com que não possamos acessar o veículo”, ressalta.

Carolina é cadeirante há 21 anos. Foto: Arquivo Pessoal

Carol também explicou sobre como é esse mal funcionamento dos elevadores. “O problema é que quando o elevador está com defeito, isso faz com que eles ora não abram, ora não desçam e ora não subam, o que acaba inviabilizando nosso acesso nestes transportes”.

A cadeirante e ativista relata que para sair de casa costuma ligar para a garagem de ônibus e perguntar a que horas um veículo adaptado e com bom funcionamento do elevador estará disponível. “Faço isso para evitar o risco de ir para a parada e chegar um ônibus que eu não consiga acessar, o que já aconteceu e muito, lógico que ligar também não é uma garantia que tudo dará certo, mas diminui um pouco o risco”.

O PCD Geraldo Barbosa utilizou cadeira de rodas de 2017 a 2019 e hoje utiliza uma órtese na perna para locomoção. Ele afirma que há dois tipos de acesso para cadeirantes nos ônibus: os elevadores e rampas. “Confesso que prefiro esse sistema [rampas] porque considero mais prático, rápido e um pouco mais eficiente”, diz ele.

Segundo ele, o sistema de elevadores ainda é um tanto falho pois, assim como disse Carol, há momentos em que os elevadores apresentam mal funcionamento, o que faz com que seja inviável o embarque de cadeirantes. Ele também acredita que, se comparado aos anos de 2017 a 2019, o sistema de elevadores melhorou um pouco. Mas faz uma ressalva, afirmando que ele “ainda tem que melhorar”.

Para entender essa diferença entre os dados da EPTC e a realidade vivida pelos deficientes é preciso, antes de mais nada, entender a legislação sobre o assunto.

QUAIS SÃO AS LEIS E O QUE ELAS DIZEM?

A Lei nº 10.048, 8 de novembro de 2000, dá prioridade de atendimento às pessoas com deficiência. O Art. 3 desta lei assegura que “as empresas públicas de transporte e as concessionárias de transporte coletivo reservarão assentos, devidamente identificados, aos idosos, gestantes, lactantes, pessoas portadoras de deficiência e pessoas acompanhadas por crianças de colo”. Regulamentada pelo Decreto nº 5.296, de 2 de dezembro de 2004, a lei representa um avanço social que estabelece a acessibilidade como “utilização, com segurança e autonomia, […] dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação e informação”.

O Art. 34º da Lei Estadual nº 13.320 estabelece que “as empresas concessionárias do Sistema Estadual de Transporte Metropolitano de Porto Alegre — RMPA — devem disponibilizar, em seus veículos de transporte coletivo de passageiros, dispositivos que facilitem o acesso à pessoa com deficiência física, obesos, gestantes e idosos, sob a supervisão do órgão estadual competente”.

A Norma Brasileira 14.022, elaborada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) em 2011, “dispõe sobre as especificações de acessibilidade em veículos de características urbanas para transporte coletivo de passageiros”. Já a Norma Brasileira 15.570, do mesmo ano, “apresenta as especificações técnicas para fabricação de veículos de características urbanas para transporte coletivo de passageiros”.

O QUE DIZ A EPTC?

Desde o início da pandemia, 98 ônibus adaptados da Carris entraram na frota de Porto Alegre, pois a companhia já estava em processo de licitação desde 2019. Com isso, a Carris possui 347 ônibus na frota do sistema de transporte público de Porto Alegre. Em janeiro de 2022, a frota operante na Capital era de 833 veículos — 486 de outras empresas que não a Carris — com atendimento a uma média de 410 mil passageiros no mês, durante os dias úteis.

O dado de que 91,5% da frota possui elevador ou piso baixo foi passado diretamente pela EPTC, que fez esse levantamento em janeiro de 2022. O órgão acredita que em até 1 ano e meio, 100% da frota, enfim, será acessível. “Dentro de um ano ou um ano e meio a probabilidade é que esses 100 veículos [que não possuem rampa ou elevador] saiam da frota para que tenhamos toda a frota com acesso a cadeirantes”, acredita Flávio Tumelero, gerente de planejamento da operação de transporte da EPTC.

Ele relata que os 8,5% dos ônibus inacessíveis são, em sua maioria, anteriores à 2009. “Esses veículos, por serem antigos, não possuem acessibilidade para os PCDs e é inviável adaptá-los porque, se tratando de veículos mais antigos, eles não possuem estrutura para implementação dos elevadores”, diz Flávio. Ele complementa explicando também que estes ônibus não possuem elevador porque antes de 2009 não era obrigatória a adaptação desses transportes.

Muitas vezes, entretanto, os elevadores estão vulneráveis a defeitos. Flávio diz que isso é comum em veículos não tão novos devido ao tempo de funcionamento. Segundo ele, os ônibus devem passar por vistorias técnicas conforme o tempo de fabricação. Os veículos recebem um prazo de 7 dias para consertar os elevadores, e quando não há cumprimento do tempo limite esses mesmos ônibus são retirados de operação.

Além disso, o gerente reforça sobre a importância de haver reclamações de usuários em relação aos problemas de funcionamento dos elevadores. “É necessário entrar em contato conosco pelo número 156 ou 118 e registrar a reclamação para a nossa equipe de vistoria e fiscalização ir atrás desses veículos e consertar o problema”, informa o gerente.

A EPTC informa que são feitas cerca de 110 vistorias por semana. Em caso de problemas técnicos, o veículo é encaminhado para a manutenção. Em 2019, a EPTC registrou 110 reclamações a respeito de ônibus com elevadores danificados. No primeiro ano da pandemia, em 2020, houve 34 reclamações. Em 2021, o número diminuiu para 33

Os números em si são excelentes na visão da EPTC, que informou que nos anos de 2019 e 2021 foram feitas, respectivamente, 5.110.261 e 2.937.025 viagens. Mas é válido lembrar que em muitas destas viagens não havia um PCD a bordo. Assim como há ocasiões em que o elevador dos ônibus não funcionou e o usuário não entrou em contato para prestar a devida reclamação.

Além dos problemas nos elevadores, há outra questão que não é necessariamente uma crítica, mas algo que os cadeirantes chamam a atenção. Trata-se da quantidade de vagas para usuários de cadeira de rodas. Afinal, os ônibus da capital oferecem apenas uma vaga para este público por veículo. “O problema que pode acontecer é você esperar um ônibus chegar e, quando ele chegar, já houver um cadeirante ocupando a vaga especial, logo se você for cadeirante não conseguirá pegar o ônibus”, afirma o PCD Geraldo Barbosa.

Flávio Tumelero diz que aumentar a quantidade de vagas não é algo provável a curto prazo. “Cada vaga para cadeirante que for adicionada tirará 4 bancos”, afirma. A EPTC informa que em uma época em que apenas 10% da frota era considerada acessível, certos ônibus tinham até 4 vagas para cadeirantes. “Hoje, diferente daquela época, já que mais de 90% da frota é considerada acessível, não se trabalha com a possibilidade de aumentar as vagas para os usuários de cadeira de rodas”, diz Flávio.

Ele complementa explicando que a EPTC não pensa em aumentar as vagas para cadeirante, pois a empresa segue a legislação atual, que exige apenas uma vaga para cadeirantes por veículo. Então, para que seja possível aumentar o número de vagas seria preciso surgir uma nova legislação exigindo esse aumento. Porém, Flávio acredita que não é provável que essa legislação mude a curto prazo.

Para 2022, os planos da EPTC envolvem o aumento de 5% a 10% na demanda de horários dos ônibus em circulação até março, com o retorno das aulas presenciais.

EXISTE ACESSIBILIDADE?

Carol não concorda com a visão da EPTC acerca do número de reclamações sobre mau funcionamento dos elevadores. Segundo ela: “Quando você olha o número de críticas [33 em 2021] ao mau funcionamento dos elevadores por ano, pode ser que você conclua que é um número baixo, porém ele não condiz com a realidade, visto que muitos cadeirantes nunca prestam queixa por nem saberem que existe a possibilidade e o direito de fazer isso”.

Ela complementa: “muitos PCDs sofrem com mau funcionamento do elevador e acabam não fazendo reclamação justamente porque não sabem como fazer, se podem fazer, nem por onde fazer, por isso o número de queixas não é alto”. Ela continua: “se cada um soubesse como fazer e fizesse uma reclamação toda vez que ocorresse mau funcionamento nos elevadores, o número de queixas seria muito maior e, aí sim iria condizer com a realidade”.

Carolina Santos avalia que as dificuldades de acessibilidade se devem à falta de políticas públicas. “A gente [que faz parte dos movimentos] tem que estar sempre batalhando para que isso melhore”, diz Carolina Santos. Carolina crê que os movimentos sociais e políticos possuem um papel fundamental nessa luta por mais direitos.

“Acreditamos sim que podemos fazer a diferença e obter direitos mais igualitários, mas precisamos, acima de tudo, que nossos gritos sejam ouvidos para que mudanças aconteçam, não depende só de nós, mas somos uma parte muito importante para fazer mudanças”.

“A luta de alguns movimentos como o INCLUSIVASS fez a cidade melhorar, mas ainda carecemos de uma melhor mobilidade e igualdade para nosso público”, afirma. Ela completa afirmando que a mobilidade urbana e a acessibilidade são quase sinônimos e não há possibilidade de falar de um sem mencionar o outro. “A mobilidade urbana deve ser para todas as pessoas”, ressalta.

Ela afirma que o que mais ocorre é a retirada de direitos conquistados por pessoas com deficiência ao longo dos anos, como a anulação, em diversos momentos, de projetos estabelecidos pelo Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE). “Nós continuamos com transportes não tão qualificados e uma cidade inacessível, o que não permite um bom trânsito das pessoas com deficiência”, diz.

“O fato é que a cidade e seus serviços deveriam estar mais aptos a se adaptar a nós cadeirantes, o que acaba muitas vezes não acontecendo, pois somos obrigados a enfrentar um serviço de transporte que ainda não é tão democrático e igualitário quanto deveria ser”, explica ela.

O PCD Geraldo Barbosa, segue a mesma linha de Carolina. “Já houve algumas situações em que eu esperei o ônibus, e quando ele chegou não havia como entrar porque o elevador não funcionava e o pior disso é que quando isso acontece você terá de esperar mais um tempo para que outro ônibus chegue, fazendo com que você muitas vezes perca ou se atrase para compromissos importantes”, relata.

Sobre o fato de cada ônibus oferecer apenas uma vaga para cadeirante, Carol acredita que o mais importante seria todos os ônibus contarem com uma acessibilidade de qualidade.

“Ainda que seja importante ter mais de uma vaga, a prioridade tem de ser tornar a frota 100% adaptada, lembrando também que é preciso que todos os elevadores estejam funcionando, pois não vai adiantar todos os ônibus terem elevadores, mas estes tiverem defeitos”, ressalta.

“Nos últimos tempos, eu tive de começar a sair de casa duas horas antes dos compromissos para que, caso o ônibus tenha defeitos de acesso ou já tenha um cadeirante ocupando a vaga especial, dê tempo de eu pegar outro ônibus e não me atrasar para minhas tarefas”, complementa Carol.

Carolina é cadeirante há 21 anos e afirma que as ruas de Porto Alegre não têm uma boa estrutura para deficientes físicos. Para ela, o direito de um cadeirante transitar por uma cidade estrutural é fundamental para a evolução em sociedade. “O que nós queremos é apenas uma cidade com mais igualdade, em que tanto os cadeirantes quanto os não cadeirantes possam ter uma boa mobilidade e uma boa acessibilidade”, explica Carol.

Fratura é a palavra que ela utiliza para descrever as ruas da Capital. Ela relata um episódio em que precisou se comunicar com a escola onde seu filho estuda para solicitar rampas de acesso a cadeirantes nas dependências do local. “Não tinha como levá-lo. Mas esse processo de denúncia não bastou”, diz. Em um dia de chuva, relata Carolina, após buscar o filho na escola, havia um buraco pela região que a fez cair e fraturar o fêmur. “Sou eu quem arca com as consequências de uma cidade que ainda não tem a devida estrutura”, ressalta.

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